A Reforma da Previdência de 2019: Perspectivas e Impasses em 2024
1. Introdução
A Reforma da Previdência de 2019, promulgada pela Emenda Constitucional nº 103, trouxe significativas mudanças no sistema previdenciário brasileiro, afetando tanto os trabalhadores do setor privado quanto os servidores públicos. Embora muitos de seus dispositivos tenham entrado em vigor de forma imediata, ao longo dos anos surgiram diversas contestações judiciais sobre a constitucionalidade de algumas regras aplicáveis pela reforma. Em 2024, passados cinco anos desde a sua implementação, o Supremo Tribunal Federal (STF) continua a discutir aspectos centrais da reforma, sem que haja uma definição clara sobre questões cruciais que afetam a vida de milhões de trabalhadores e aposentados. Este artigo busca analisar os principais pontos da reforma ainda pendentes de decisão no STF e as implicações que eventuais mudanças podem trazer para o sistema previdenciário brasileiro.
2. Principais Pontos da Reforma da Previdência de 2019
A Reforma da Previdência de 2019 trouxe uma série de mudanças estruturais ao sistema de aposentadorias e benefícios do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e do Regime Próprio de Previdência dos Servidores Públicos (RPPS). Entre as principais alterações, destaque-se:
2.1. Idade mínima para aposentadoria
Antes da reforma a aposentadoria poderia ser obtida por tempo de contribuição, 30 anos para mulheres e 35 anos para homens, independentemente da idade que o segurado tinha à época em que ficasse completado o tempo de contribuição, ou poderia se aposentar por idade com 60 anos para as mulheres e 65 anos para os homens e 15 anos de contribuição. Com a reforma, a aposentadoria por tempo de contribuição foi extinta e a idade mínima da aposentadoria foi modificada, estabelecendo 65 anos para homens e 62 anos para as mulheres, com 15 anos de contribuição para as mulheres e 20 anos para os homens.
2.2. Regras de Transição
Para suavizar o impacto sobre os segurados a reforma criou regras de transição que combinam idade mínima e tempo de contribuição. Essas regras variam conforme o perfil do segurado e incluem o sistema de pedágio e pontos, onde o somatório da idade e do tempo de contribuição devem atingir uma pontuação específica.
2.3. Cálculo do benefício
O cálculo do valor da aposentadoria também foi alterado, passando a ser calculado com base na média de 100% de todas as contribuições (anteriormente eram 80% das maiores contribuições) do segurado e o valor pago ao segurado será de 60% da média destas contribuições, acrescidos de 2% a cada ano que excedam 20 anos de contribuição para homens e 15 anos para mulheres.
2.4. Aposentadoria Especial
A reforma da previdência trouxe mudanças significativas na aposentadoria especial, principalmente no que diz respeito à idade mínima e ao cálculo do valor do benefício. Antes era permitido ao trabalhador se aposentar após 15, 20 ou 25 anos, conforme o nível de exposição, após a reforma, foi exigido que idade mínima ao trabalhador, que varia de 55, 58 ou 60 anos, dependendo do tempo do grau de nocividade.
Não é mais possível converter o tempo de atividade especial em comum. No entanto, foi mantido o direito já adquirido, possibilitando a conversão do tempo de atividade até a data da entrada em vigor da reforma, desde que seja devidamente comprovada a exposição a condições especiais que prejudiquem a saúde.
2.5. Mudanças nas regras de pensão por morte
A pensão por morte passou a ser calculada de forma diferente. Após a reforma o valor inicial é de 50% do valor da aposentadoria do falecido ou do valor que ele teria direito a receber, acrescido de 10% por dependente, até o limite de 100%. Para cônjuges sem dependentes, o benefício inicial é de 60%. O valor final pode ser inferior ao salário-mínimo quando houver mais de um dependente, pois o valor é dividido entre todos.
3. Impactos Judiciais da Reforma Previdenciária
Passados cinco anos da promulgação da EC nº 103/2019, as mudanças seguem gerando impacto no campo judicial, especialmente pela percepção de que houve supressão de direitos ou uma diminuição significativa da proteção previdenciária, muitos dispositivos da reforma enfrentam contestações judiciais que chegaram ao STF. Entre os temas de maior impacto que ainda estão em debate no tribunal, destacam-se:
3.1. Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs)
Durante este período em que a EC nº 103/2019 está em vigor, várias Ações Direitas de Inconstitucionalidade (ADIs) foram ajuizadas no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando determinados aspectos da reforma, como a introdução de idade mínima para aposentadoria especial, o fim da conversão do tempo especial em comum, e as novas regras de concepção do benefício. Algumas dessas ações incluem:
- ADI 6.959 – Questiona a imposição da idade mínima na aposentadoria especial, argumentando que ela desconsidera o desgaste físico e mental dos trabalhadores expostos aos agentes nocivos à saúde.
- ADI 6.309 – Ação impetrada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI) que questiona a constitucionalidade do requisito etário na aposentadoria especial, afastar a impossibilidade de conversão do tempo especial em comum; e ainda manter a forma de cálculo do benefício conforme a Lei nº 8.213/91, com redação dada pela Lei nº 9.023/95.
- ADI 6.916 – A Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol) ajuizou a referente ação no STF contra dispositivo da Reforma da Previdência que instituiu a regra de cálculo da pensão do servidor público federal falecido enquanto atividade.
- ADI 7.051 – O STF fixou a seguinte tese: “É constitucional o art. 23, caput, da Emenda Constitucional nº 103/2019, que fixa novos critérios de cálculo para a pensão por morte no Regime Geral (RGPS) e nos Regimes Próprios da Previdência Social (RPPS).”
Essas ações seguem em tramitação e permanecem sem decisão, somente após o julgamento no STF será possível determinar a consolidação das mudanças trazidas pela reforma ou sua eventual alteração.
Como vimos estas ADIs buscam a declaração de inconstitucionalidade dos artigos da EC nº 103/2019 que violam o princípio da dignidade da pessoa humana e desconsidera as condições de trabalho dos segurados.
3.2. Jurisprudência e Discussões nos Tribunais
A jurisprudência ainda está em fase de formação definitiva, uma vez que o STF não decidiu de forma conclusiva sobre todas as questões levantadas em torno da reforma da previdência. Contudo, nos casos anteriores a EC nº 103/2019, o tribunal sempre reconheceu a especial proteção que deve ser dada aos trabalhadores expostos a agentes nocivos, especialmente no que diz respeito à comprovação da insalubridade e concessão da aposentadoria especial.
3.2.1. Debates sobre o Fim da Conversão do Tempo Especial
Uma das mudanças mais contestadas judicialmente foi o fim da conversão do tempo especial em comum. Diversos tribunais têm enfrentado a questão da retroatividade dessa regra, já que trabalhadores que contavam com essa possibilidade para antecipar suas aposentadorias foram surpreendidos pela alteração das normas. O judiciário tem sido um espaço de luta para trabalhadores que buscam reverter essas mudanças ou pleitear seus direitos de forma mais favorável.
3.2.2. Aposentadoria dos Servidores Públicos
A reforma igualou, em grande medida, as regras dos servidores públicos às do regime geral, o que provocou questionamentos judiciais por parte de categorias como policiais, médicos e professores. Esses grupos alegam que suas atividades são de natureza especial, exigindo tratamento previdenciário diferenciado.
3.2.3. Pensão por Morte e Cálculo do Benefício
A redução do valor da pensão por morte foi uma das medidas mais criticadas da reforma. A nova regra determina que o valor da pensão seja de 50% do benefício do falecido, acrescido de 10% por dependente. Assim, uma viúva sem filhos teria direito a apenas 60% da aposentadoria do falecido.
Em 2023 o STF decidiu que são constitucionais as novas regras de cálculo da pensão por morte dos segurados do RGPS que morrem antes da aposentadoria.
Já o cálculo da pensão por morte de servidores federais civis passou por alteração em suas regras em setembro de 2024. A Receita Federal do Brasil (RFB) determinou uma adequação nos cálculos de alguns benefícios de pensão por morte de servidores federais civis. Esta medida está relacionada aos contribuintes com salários acima do teto do INSS, para aqueles com contribuição inferior segue as mesmas regras.
3.2.4. Regras de Transição
As regras de transição são outro ponto polêmico da reforma. Trabalhadores que vieram a se aposentar na época da promulgação da Emenda Constitucional, se sentiram prejudicados pela mudança abrupta das regras. O STF analisa se as normas de transição condicionantes respeitaram o direito adquirido e a proteção ao ato jurídico perfeito, uma vez que muitos contribuintes argumentam que o novo modelo do tempo de contribuição desconsidera expectativas legitimamente construídas ao longo de suas carreiras.
3.2.5. Acúmulo de Benefícios
A nova regra para o acúmulo de benefícios previdenciários, como pensão por morte e aposentadoria, prevê uma redução significativa no valor do segundo benefício acumulado. O STF discute a compatibilidade dessa norma com os princípios constitucionais, especialmente em relação à segurança social e à proporcionalidade. Os críticos argumentaram que as restrições impostas ao acúmulo de benefícios violam a expectativa de direitos dos garantidos que, por muitos anos, se desenvolveram com o sistema previdenciário.
3.2.6. Direito Adquirido e Expectativa de Direito
Muitas das discussões no STF sobre a Reforma da Previdência giraram em torno da interpretação de dois conceitos centrais no Direito Previdenciário: direito adquirido e expectativa de direito. De acordo com o artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal, o direito adquirido deverá ser respeitado, não podendo ser alterado por lei posterior. No entanto, a reforma trouxe incertezas sobre o que se caracteriza como direito adquirido para os trabalhadores que ainda não tinham atingido as condições para a aposentadoria até 2019.
A Corte Suprema analisa, portanto, se as mudanças da reforma, especialmente nas regras do benefício da aposentadoria especial e na idade mínima, que violam o direito adquirido dos trabalhadores que já estavam próximos da reforma.
4. As Implicações das Decisões do STF
As decisões que o STF adotar sobre essas questões certamente terão um grande impacto sobre o sistema previdenciário e sobre milhões de segurados. Caso o STF reconheça a inconstitucionalidade de alguma das normas da reforma, pode haver:
- Reajuste dos benefícios: concedidos desde 2019, gerando custos adicionais aos cofres públicos e afetando o equilíbrio fiscal tão esperado pela reforma.
- Mudanças nas regras de cálculo: beneficiando os segurados que se aposentaram sob o novo regime, mas que podem obter cálculo mais benéficos de seus benefícios, gerando alto custo para os cofres públicos.
- Revisão das regras de transição: com impactos diretos sobre os trabalhadores da área da segurança, que vieram se aposentar à época da reforma e foram diretamente afetados pelas novas exigências.
Por outro lado, caso o STF mantenha a constitucionalidade das principais regras da reforma, haverá uma afirmação das novas normas, com reflexos na segurança jurídica e previsibilidade para o sistema previdenciário, mas também com a manutenção de uma carga menor de benefícios para muitos segurados.
5. Projetos de Lei Discutidos no Congresso Nacional
A insatisfação com as mudanças trazidas pela reforma também levou ao surgimento de diversas propostas legislativas no Congresso Nacional, estes Projetos de Lei (PLs) que estão tramitando visam restabelecer direitos aos trabalhadores expostos a condições insalubres ou perigosas. Alguns dos principais Projetos de Lei (PLs) em tramitação são:
5.1. PL nº 245/2019
Ementa: “Regulamenta o inciso II do § 1º do art. 201 da Constituição Federal, que dispõe sobre a concessão de aposentadoria especial aos segurados do Regime Geral da Previdência Social (RGPS), e dá outras providências.
Explicação da Ementa:
Dispõe sobre os critérios de acesso à aposentadoria especial àqueles segurados do RGPS que exercem atividades expostos a agentes nocivos à saúde, bem como aqueles que põem em risco sua integridade física pelo perigo inerente à profissão. Também propõe a obrigatoriedade da empresa na readaptação desses profissionais, com estabilidade no emprego, após o tempo máximo de exposição a agentes nocivos.”
A proposição segue aguardando à apreciação do plenário e foi apenso ao PLP nº 41/2023, que trata sobre o mesmo tema.
5.2. PL nº 2.779/2023
“Dispõe sobre o benefício de Pensão por Morte no Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e no Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) dos servidores públicos federais e dá outras providências.”
Este projeto segue tramitando pelas comissões de Legislação e Justiça e pelas comissões permanentes relacionadas ao assunto, após, volta para apreciação no Plenário e depois vai para o presidente da república, que poderá vetar ou sancionar e tornar Lei.
5.3. PL nº 2.607/2023
Este Projeto de Lei prevê remuneração integral aos agentes da segurança pública reformados por invalidez. A proposta estende o benefício também aos guardas municipais e aos agentes socioeducativos dos estados e municípios. Estabelece que o valor do benefício será equivalente ao do agente da ativa no último grau hierárquico do posto.
Este PL segue aguardando parecer conclusivo das comissões.
5.4. PL nº 42/2023
Este PL foi proposto na Câmara dos Deputados, semelhante ao Projeto de Lei Complementar nº 245/2019, proposto no Senado, para tratar da regulamentação da aposentadoria especial. Com alguns pontos diferentes a proposição traz a ausência da idade mínima como critério da concessão do benefício, a renda inicial de 100% da média e a relação de hipóteses expressas e que reconhece a especialidade.
O Projeto ainda deve passar por algumas comissões e não há previsão de conclusão em sua tramitação.
5.5. PL nº 5.609/23 e PL nº 5.332/23
Ambos os Projetos de Lei tratam da aposentadoria por invalidez. O PL nº 5.609/23 unifica o prazo para revisão da concessão de aposentadoria por incapacidade em cinco anos, e o PL nº 5.332/23 dispensa a reavaliação periódica do aposentado por invalidez permanente, irreversível ou irrecuperável. A proposta modifica a Lei nº 8.213/1991 que trata dos planos e benefícios da Previdência Social, e a Lei nº8.743/1993, que trata da organização da Assistência Social no Brasil.
Ambos os projetos seguem em tramitação.
5.6. Outros
Diversos outros Projetos de Lei seguem em discussão na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, assim como alguns Projetos de Emenda Constitucional (PEC) que visam modificar a Reforma da Previdência de 2019, a exemplo das PECs nº 133/2019 e nº 555/06, apensas com a PEC nº 06/2024.
A PEC nº 133/2019 ficou conhecida como a PEC Paralela, pois buscava ajustar algumas distorções causadas pela EC nº 103/2019, dentre eles permite que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios adotem em seus regimes próprios de previdência social as mesmas regras aplicáveis ao regime próprio da União, dentre outras como a possibilidade de aposentadoria especial para categorias que lidam com condições de risco e a manutenção de condições mais adequadas pra pensão por morte e aposentadoria.
5.7. Leis Aprovadas que Modificam a Reforma
Até o momento não houve alterações legislativas aprovadas de forma ampla e definitiva que modifiquem a essência das mudanças introduzidas pela EC n 103/2019. No entanto, a pressão política e social, somada as discussões jurídicas levou o Congresso a avançar em algumas proposições, e há expectativa de que os projetos de lei em tramitação possam produzir futuros ajustes no sistema previdenciário.
6. Conclusão
A Reforma da Previdência de 2019 trouxe mudanças significativas para os segurados, com a criação da idade mínima, alterações no cálculo dos benefícios e restrições na aposentadoria especial. Essas mudanças resultaram em diversos questionamentos judiciais e no surgimento de projetos de lei que buscam reverter ou ajustar pontos considerados injustos ou prejudiciais.
O desenvolvimento dessas discussões judiciais, em especial no STF, e a tramitação de projetos no Congresso Nacional são essenciais para definir o futuro das regras previdenciárias e dos direitos dos trabalhadores no Brasil.
O ano de 2024 se aproxima do final, e o STF ainda não proferiu decisões definitivas sobre muitos dos aspectos cruciais da Reforma da Previdência de 2019. As discussões em torno da pensão por morte, das regras de transição e do acúmulo de benefícios continuam a gerar expectativas entre os segurados e os aposentados, enquanto o tribunal enfrenta o desafio de equilibrar os princípios constitucionais com a sustentabilidade do sistema previdenciário.
As decisões do STF sobre esses temas são de extrema relevância para o futuro do regime previdenciário brasileiro e para a proteção dos direitos dos segurados. Em um cenário de incerteza, é necessário que os trabalhadores e aposentados estejam atentos às mudanças e tendências para buscar, se necessário, uma revisão de seus direitos.
Se você tem alguma dúvida sobre seus direitos previdenciários, ou se está dentre os grupos com temas que estão sendo discutidos, procure um advogado especializado em Direito Previdenciário, ele é o profissional que está apto para lhe auxiliar em garantir os seus direitos, mesmo que para isso seja necessário ingressar com um processo na justiça.
HENRIETE SANTOS ARNHOLD
Bacharel em Direito